Nós — A distopia que há mais de 100 anos bate no comunismo e seus filhotes
Publicado em 12/04/2025 · Categoria: Política

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Publicado originalmente em 1924, Nós, do russo Iêvgueni Zamiátin, é uma das primeiras distopias modernas da literatura mundial, precedendo obras como Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell — este último, aliás, declaradamente influenciado pelo autor russo. Escrita em meio ao fervor revolucionário da Rússia pós-1917, a obra é em si mesma uma crítica feroz ao totalitarismo e ao culto da razão absoluta, disfarçados sob a promessa de progresso. Mesmo após mais de cem anos de sua publicação, continua sendo uma das mais completas e afiadas críticas ao utopismo comunista já escritas.
A história se passa em um futuro indefinido, onde a humanidade vive sob o regime do Estado Único, uma sociedade hiperracionalizada e utópica, guiada por uma lógica matemática e uma vigilância total perfeita. Os indivíduos perderam o nome, pois a mera individuação pessoalística, para o Estado, é uma espécie de revolta a ser esmagada; assim, são designados apenas por um letra e três números, como o protagonista D-503, um engenheiro circunspecto responsável pela construção da nave Integral, destinada a levar os valores do Estado a outros planetas.
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Zamiátin constrói a partir disso uma realidade onde a liberdade individual é considerada uma doença perigosa a ser suprimida no vestígio primevo de sua aparição na consciência da população. A autonomia e a consciência livre são uma espécie de relíquia bárbara do passado, onde havia desigualdades e explorações múltiplas. Para remediar esse mal do passado, a vida dos cidadãos, os “números”, é rigidamente controlada: eles vivem em casas de vidro, seguem horários exatos para cada atividade e até mesmo o sexo é regulamentado por cupons oficiais. Uma mera conversa pode ser vista como ato de rebeldia. O que se perde em liberdade é supostamente recebido em ordem e felicidade programada pelo Estado — uma felicidade baseada na ausência de escolhas e mínima autenticidade.
A trama ganha densidade quando D-503 conhece I-330, uma mulher misteriosa e sedutora que introduz o protagonista a um submundo de pensamento livre, emoção e rebelião. É a partir desse encontro que se desenrola o conflito central da obra, isto é, a luta entre razão e emoção, entre o coletivo e o individual, entre a rigidez mecânica e a fluidez do humano. O diário de D-503, que compõe o texto da narrativa, vai aos poucos se desestabilizando — refletindo a deterioração de sua lógica cartesiana diante do surgimento do “eu” real, o eu sem predefinições, sem o determinismo mecânico apregoado como fato incontestável naquele ambiente.
A narrativa de Nós
O autor nos conduz por esse processo com maestria estilística: frases truncadas, digressões, repetições e parênteses sugerem a quebra da ordem interna do personagem e, por extensão, do próprio mundo em que ele vive. A realidade social comandada pelo Estado, aquela de controle supremo, se desfaz à medida que aflora em D-503 vontades, desejos, críticas e escolhas — ainda que mínimas — sem a supervisão do Estado. O estilo fragmentado de seu diário, por vezes caótico, não é defeito de roteiro, mas escolha consciente para retratar a crise de identidade e o despertar da consciência.
Nós não é apenas um retrato da URSS nascente — embora essa leitura seja inevitável. Sua crítica vai além do contexto soviético e questiona qualquer sistema que busque esmagar a individualidade em nome de uma suposta perfeição social. A ironia de Zamiátin é afiada, pois, ao satirizar o racionalismo extremo na política, ele nos obriga a confrontar os perigos de uma sociedade onde tudo é previsível, calculável, transparente, onde a ciência alcançou um grau de perfeição imaculada que os próprios defeitos inerentes à humanidade, como a incerteza, a mera tibieza de consciência e a imoralidade mais banal — aspectos inevitáveis de uma equação de liberdade funcional — passam a ser um crime capital. É bom lembrar que o comunismo apregoava que o marxismo era uma ciência, e por isso exata e inevitável.

Mais do que uma distopia política, como podem notar, Nós é também uma meditação filosófica profunda sobre o que significa ser humano. A busca pelo “eu”, pela alma, pelo amor — mesmo em um mundo que os nega — é o que confere à obra sua força poética e subversiva que até hoje continua atacando com força e constância todo arroubo autoritário. Afinal, se o comunismo é bom em reinventar retóricas e agentes para suas revoluções, ele é péssimo em minorar seus defeitos e consequências implacáveis. No fim, percebe-se que o comunismo totalitário dos soviéticos continua, em maior ou menor grau, em seus filhotes remanescentes — por exemplo, nos neo-utópicos, os progressistas identitários; o que faz do texto de Zamiátin ainda mais atualizado e necessário, aliás.
Eu havia lido a obra, pela primeira vez, na primeira metade de 2017, por meio da ótima e luxuosa edição da Aleph, traduzida direto do russo por Gabriela Soares; e reli há duas semanas na igualmente ótima edição da Avis Rara, traduzida do inglês pela Roberta Sartori, com prefácio do próprio George Orwell. Confesso que não encontrei problemas nas referidas edições e nem nas traduções, sendo ambas ótimas escolhas para ler a distopia.
Por fim, Nós é uma leitura exigente, porém recompensadora. Pois sua linguagem ousada e sua visão de futuro continuam, como disse acima, surpreendentemente atuais, ecoando em tempos modernos de algoritmos invasivos, vigilância digital constante e ideologias que suprimem a natureza humana e distorcem a identidade individual. Eugene Zamiátin nos legou uma obra seminal contra o totalitarismo em suas mais variadas formas, mas, em especial, contra o comunismo e suas variantes contemporâneas. É um grito lúcido contra o conformismo e uma celebração corajosa da liberdade de consciência e expressão.
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